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domingo, 21 de maio de 2023

beautiful boy ou o insutentável peso do ser

(não precisa ser um gênio para entender o trocadilho do título, mas se você não pegou, recomendo fortemente um Kundera expresso)

    Querido Menino é um filmaço daqueles superlativos, seja em duração, elenco ou mesmo trilha sonora (valei-me minha nossasenhoradastrilhassonorasperfeitas). Com nomes como Steve Carell e Timothhée Chalamet (que, sinceramente, tem o rosto mais anguloso que um triângulo retângulo e um cabelo mais sensacional que uma pintura de Da Vinci e é representação perfeita da música do John Lennon homônima ao filme), não tinha como não ter uma indicaçãozinha sequer ao Golden Globe, né? Já a trilha é daquelas que dá vontade de pegar meu carro e dirigir por horas, para onde? eu não sei, só por aí, com os vidros abertos e o braço esquerdo sentindo o ar - sentindo a insustentável leveza do ser, que é terrivelmente real e tácito.

    Certamente, quem leu o livro do Milan Kundera que citei acima percebe - de modo rápido - o quanto os seres humanos forjam dramas, afinal de contas somos a única espécie que racionaliza e até dignifica o próprio sofrimento. Pois bem, Nic é um sortudo, apesar de estar geograficamente longe da mãe, ele é criado por um pai incrível - que logo cedo o enche de referências, de amor, sabedoria e substância para não ser apenas mais um nesse mundo vasto. Nic vive uma paternidade plena, de companheirismo, amizade e espaço para que ele se desenvolva - enquanto menino e enquanto ser. As cenas de ambos curtindo um rock no carro são SENSACIONAIS. Os flashbacks do filme, porque - sim - esse é um filme de excertos e memórias, são povoados pelas mais incríveis - e cabíveis - canções. Mas apesar de tudo para ser feliz, Nic sente o não pertencimento, o vazio, o insustentável peso do ser.

    A partir daí a trama de desenrola, um rapaz brilhante, um lindo (e põe lindo nisso) homem que encontra nas drogas o preenchimento de buracos negros imensos (como ele próprio define). A decadência que a droga o leva, as remissões e inúmeras recaídas, o apoio incondicional dos pais, até a exaustão dos mesmos, passa longe do clichê e toca de forma crua na pele como ferida exposta - dói mesmo sem ver.

    O drama exaustivo do garoto entorpecido que um dia pensou ser escritor, a cansativa jornada da culpa dos pais que não previram, não causaram e não curaram, as cenas viscerais e uma sonata ao fundo, o que mais se poderia esperar? Com o peito apertado, cheguei ao final pensando na dor que ninguém vê e, que como diria Chico, não sai no jornal. Ao mesmo tempo nunca mais tinha assistido um filme de tamanha qualidade estética, sem romantizar as drogas ou mesmo assumir tom educativo, apenas a vida como ela é. E, sim, ela é.

    Coincidentemente, ou não, senti uma vontade louca de ouvir meu album preferido do Radiohead e calhou de tocar Exit Music (For A Film) e, vá ouvi-la agora!,  essa é uma música que casaria perfeitamente com o filme, com o tema e com uma tarde morna de domingo (como essa) "wake from your sleep the drying of your tears, today We escape, We escape".

    Agora faça um favor a si mesmo e vá assistir Beautiful Boy.



    E caso decida pegar o carro e sair por aí lembre-se de colocar em sua playlist "today We escape, We escape".

ps: post totalmente sobre o filme, não li (nem lerei) o best-seller no qual foi baseado.

sábado, 19 de janeiro de 2019

Vanilla Sky e o real como algo muito além dos limites do sonho


Refeita do susto da primeira impressão, refeita do rubor causada pelo excesso de pele do Tom Cruise à mostra, posso escrever sobre Vanilla Sky.
- só lembrando que não faço resenhas, só dou opiniões prudentemente impertinentes -

Vanilla Sky foi lançado quando eu tinha seis anos, à época que pensavam que a revolução informática e científica nos levaria a níveis nunca antes imaginados, porém esboçados lá no século passado pelo Kubrick em seu sensacional 2001; o filme é uma refilmagem americana (provando que Hollywood gosta mesmo de inovar imitando) do filme espanhol Abre Los Ojos, tal qual é repetido diversas vezes ao longo do filme. Conhecemos na película o jovem e rico David, um clássico esteta de Kierkegaard, vivendo hedonisticamente para o prazer que vem que com o dinheiro e o dinheiro que vem com o prazer - afinal de contas seu império é constituído na venda da imagem disfarçada de jornalismo, embora nem tão focado no filme.
A personalidade superficial de David é delineada aos nossos olhos pelo seu relacionamento com sua fuck buddy (personagem da ainda bela Cameron Diaz, com aqueles quilinhos a mais que faziam toda a diferença em seu rosto) - onde quatro sessões de sexo representam.... ficaremos sem saber o que isso significou à Julie (Cameron), embora saibamos que David fazia-a feliz, mas quão feliz pode ser uma garota segurando um martini enquanto persegue um homem que não a ama?

David também é caracterizado pela forma como seus sócios o vêem: o bon vivant sem responsabilidades - exceto a de consumar os próprios desejos. Seu melhor amigo também nos ajuda a desvendar esse caráter, seja pela veneração devotada à David ou pelo tratamento indulgente que o personagem principal tem com o melhor amigo, caso ele esteja satisfeito.
David é um cara intocável, como tantos outros que conhecemos - embora nenhum deles tenham tanto charme quanto Tom Cruise - que muito nos dão e nada nos entregam e quando vão embora ficamos com uma ligeira dúvida se a queimação na barriga é uma nostalgia incurável ou uma lembrança ruim ou apenas  gastrite. Como o cara intocável que é, não aceita negativas e quando encontra-as no olhar de Sophia (personagem da sempre lindíssima Penélope Cruz, porém àquela época tão esquisita, que inclusive participou do filme original). E se no olhar de Sophia ele encontra uma recusa, aos seus pés ele encontra talvez a felicidade que Julie tanto lhe questionou se possuia.
 
Envolvido pelo amor de uma noite só, pelo amor do prolongamento do prazer, pela afeição delicada dos desenhos pueris em folha de papel A4, pela pureza do beijo roubado, pela completude de uma noite - não consumada, David é finalmente tocado. Talvez se dali o filme se seguisse veríamos o desenrolar e o degringolar de um amor, da aurora ao crepúsculo, talvez a brutalidade da vida real nos saltasse aos olhos com suas garras, mas tudo isso foi interrompido com a entrada de David no carro de Julie.
Certo, Gabs, sem spoiler.
O que se segue é uma trama bem amarrada que entremeia passado-presente-futuro-ficção-realidade com um ritmo frenético que faz parecer que ficar na frente de uma tela por mais de cento e vinte minutos não é tão cansativo assim. A vida de David muda de forma irreversível, como a deformação física de uma mola. O então galã é transformado em fera, esfregando em nossa cara todos os nossos preconceitos maniqueístas: Agora podemos ver ue internamente David não é tão bonito assim, algo que era ocultada por um belo rosto (e corpo!!) e um carisma sem limites. David também se enxerga assim e ali sua vulnerabilidade se mostra, de repente ele não tem mais tantas qualidades quanto pensava, de repente ele não é tão racional assim.

à priori, David escolhe a fuga. Ele foge porque a realidade é forte, é imponente, um muro de concreto contra nossos narizes de carne. A realidade dói porque é inflexível. David não aceita o fato, sucumbe aos próprios sonhos, tão atraentes, mas esse labirinto quimérico também tem suas mazelas e de repente ele também não é tão flexível quanto achávamos.
David volta atrás de sua decisão imediatista, renuncia o sonho - muito embora seja apenas no sonho que possa ter uma vida que deseja, é ali também uma prisão: onde tudo se tem, mas quão livre se pode ser em uma ilusão? David renuncia, volta atrás e escolhe a realidade, a dura e fria realidade, onde o doce não é tão doce se não se conhece o amargo. David conheceu o amargo também em si mesmo, percebeu que não era tão bom assim. David abre uma nova porta para si, talvez o início de um novo eu. A volta ao mundo natural é iniciada:  É necessário, é preciso abrir os olhos.